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Nas novas "SAFs em redes", o torcedor brasileiro terá que aprender o significado de "hierarquia"

Por Virtual Rondônia em 13/03/2023 às 14:11:28
Mais acelerada do que o esperado, a proliferação dos grandes conglomerados internacionais de clubes deve impor uma nova mentalidade – não necessariamente desejada Botafogo, Vasco e Bahia são os primeiros exemplos de clubes brasileiros de grande torcida adquiridos para/por grupos de “multi-club ownership” (MCO), essas cada vez mais presentes sociedades empresariais que se estabelecem sobre a propriedade de múltiplos clubes de futebol de diversos países.

Logo no início desses negócios, muitos se preocuparam, alguns questionaram e os clubes receberam respostas confortadoras semelhantes dos seus respectivos investidores: o seu clube não será algo secundário dentro da nossa rede.

A reticência, apesar de minoritária, era justificada. Além da “empresarização” ser uma experiência nova dentro do futebol brasileiro, desacostumado com “clubes-empresas”, a própria ideia de incluir diversos clubes em um conglomerado multinacional é algo novo no futebol global – especialmente aqueles com grande torcida.

Não se trata necessariamente de recorrer ao termo “satélite” – como muitos rivais tem feito de forma pejorativa, para provocar – mas de entender que a própria estrutura da indústria do futebol exige a compreensão de escalas, e que essas escalas são inevitáveis.

Uma rede que reúne um clube de uma das principais ligas européias, principalmente aquele que é frequentador assíduo da Champions League, nunca vai poder dar tratamento equânime a um clube localizado na liga brasileira. E não importa muito o que o proprietário ou seus subordinados falem em entrevistas e pronunciamentos, as hierarquias se impõem pela própria “macroeconomia” desse esporte.

Pode haver, evidentemente, formas diferentes de se encaixar nessa relação, com os benefícios se sobressaindo através do investimento, do deslocamento de jovens promessas, da circulação de staff qualificado e experiente, etc. Mas, ainda assim, é preciso estar ciente do que é estar subordinado a uma pirâmide que, em algum momento, vai apresentar situações controversas entre torcedores, clubes e a rede.

A filosofia City no Bahia

A franqueza de Renato Paiva, treinador do Bahia, em entrevista recente, gerou grande repercussão ao ilustrar um dos grandes riscos do caso muito específico que foi a venda dessa SAF para o City Football Group – talvez a principal rede de clubes do mundo.

No Bahia, Renato Paiva deixa claro: "Quem manda é o grupo"

Gabrielle Gomes / ge

"O projeto de filosofia não defino eu. A filosofia define o grupo que comprou o Bahia. Agora quem manda no Bahia é o 'Grupo' [City]. Portanto, quem define a filosofia é o grupo que manda. E que comprou. E que nos pôs aqui para treinar e que põe esses jogadores para nós trabalharmos com eles”, afirmou treinador tricolor.

Renato Paiva respondia a um questionamento aos resultados da “filosofia” aplicada no time, que apesar do investimento recorde de mais de 70 milhões de reais, ainda não conseguiu encaixar um bom futebol e resultou em um mal começo de ano – incluindo uma goleada de 6 a 0 para o rival Sport.

Financiado por um conjunto de empresas vinculadas aos interesses geopolíticos do emirado de Abu Dhabi, o “City Group” possui onze clubes espalhados por quatro continentes, cada qual à sua maneira submetidos ao mesmo objetivo final: o fortalecimento do clube inglês Manchester City.

Com uma expectativa tão alta gerada pela chegada do “grupo de maior expertise em futebol do mundo”, certamente o trabalho de comunicação foi prejudicado. “Aqui é o Grupo City, mas não é o Manchester City”, afirmou Paiva na mesma coletiva, ao dar explicações sobre os dois aspectos desse processo que mais incomodam os torcedores e a imprensa local: contratações e sistema de jogo.

Primeiro, os investimentos no Bahia não serão no nível do clube inglês, que investiu mais de 1,8 bilhões de euros em aquisição de atletas nos primeiros doze anos. Segundo, o Bahia hoje é planejado para jogar em sintonia com o padrão definido pela matriz, de Manchester. Mesmo que não esteja dando liga, o time de Paiva entra em campo de acordo com o que o Grupo City planeja para a rede.

Com o poder de fogo que tem, espera-se que as contratações passem a ser mais impactantes do que as feitas até então. Aparentemente o Grupo City subestimou a competitividade do futebol brasileiro e, para competir à altura da Série A, precisará injetar mais dinheiro do que já fez. Mas agora em jogadores decisivos e experientes, não em jovens promessas.

Esse modelo é bem diferente do que está sendo praticado em Botafogo e Vasco, clubes cujas SAFs são propriedade de grupos norte-americanos.

John Textor e seus “co-owners”

Sorridente e carismático, o empresário norte-americano John Textor desembarcou no Brasil com a missão de resgatar a glória do Botafogo, um dos clubes mais importantes do país. Afundado em dívidas bilionárias, o alvinegro encontrava um “salvador”, que em pouco tempo já era amado pela torcida – batizada por ele de “co-owners” (co-proprietários da SAF).

Um ano mais tarde, John Textor apaga o seu até então muito agitado perfil no twitter, após muitas críticas e ataques dos torcedores do Botafogo. Para além dos problemas nos bastidores – como os problemas enfrentados com os credores e a justiça, o mal desempenho dos diretores e a precária comunicação institucional sobre as questões do clube – a crise enfrentada pelo alvinegro, e a queixa dos torcedores, reside em dois pontos centrais.

John Textor: Twitter deletado depois de polêmicas nas redes

Vítor Silva/Botafogo

Primeiro, a falta de prioridade de investimentos em contratações para o Botafogo, em um contexto em que a Eagle Holding fazia forte movimentação para a aquisição do clube francês Olympique Lyonnais. O clube carioca não passou de mediano na temporada anterior e iniciou 2023 com poucas novidades positivas.

Segundo, a novidade negativa: o Botafogo perde um dos seus principais jogadores, o atacante Jeffinho, em uma negociação ainda hoje muito pouco clara. Ao menos quatro coisas diferentes foram informadas pelo clube, direta ou indiretamente, e o negócio se encerrou em uma venda com valores que talvez não impactem em nada o projeto para Botafogo.

Com a necessidade de chegar com moral na França, John Textor deslocou um atleta dentro da rede sem apresentar justificativas condizentes com a expectativa dos botafoguenses.

Cansados da longa fase ruim, os alvinegros realmente acreditaram nas recorrentes declarações de que o clube era a prioridade dentro do sistema da Eagle Holding, tantas vezes repetida pelo dono da empresa.

Mas as hierarquias se impõem. Dentro da lógica desenhada, com as peças que possui, a holding não tem como fingir que o Lyon, clube francês com chance de participar com frequência da Champions League (apesar da má forma recente), demandará a maioria dos esforços.

Ainda que seja um clube com receitas inferiores ao modesto Crystal Palace, da Inglaterra, o Lyon se encaixa de forma desproporcional ao que se via até então. Se coloca como cabeça de todo projeto, onde os demais clubes servirão de estágio de maturação de atletas de qualidade a serem transferido dentro dos marcos estabelecidos pela holding, afim de proporcionar uma “competitividade viável” (ou que não dê muito prejuízo).

A grande questão é imaginar até onde essa lógica tende a inviabilizar ou, talvez, até potencializar as ambições da torcida do Botafogo. Um sistema pouco visto na história do futebol, com prós e contras evidentes, mas com uma exigência de paciência e compreensão improváveis na cultura torcedora brasileira. Ainda mais depois de tantas promessa e ilusão.

Os “partners” do Vasco

Em uma experiência que ainda está amadurecendo, a chegada da 777 Partners no Vasco da Gama se deu com grande expecativa e com resultados imediatos que estão empolgando os torcedores. Um elenco com qualidade acima da média recente, um ambiente controlado e profissional, o fim de um jejum de 20 jogos contra o maior rival e a possibilidade de voltar a sonhar.

Bem menos midiática que a Eagle Holding, bem mais modesta o City Group, a rede criada pela 777 Partners ainda é uma icógnita para quem estuda o tema. A carteira da empresa é diferente porque, apesar de extensa, não envolve até então um clube europeu gigante e cheio de ambição.

O francês Red Star é um clube bem pequeno. O italiano Genoa é um clube modesto. O alemão Hertha Berlin é de uma prateleira inferior. O belga Standard Liége é um dos grandes nacionais, mas de uma nação que nunca formou um gigante continental. O mais relevante seria o Sevilla FC, onde o grupo viveu maus bocados e tem uma fatia minoritária.

Para o Vasco, se por um lado não há um “sistema” que coloque “ameace” o seu funcionamento, por outro demonstra que não há uma lógica muito bem estruturada que indique o que esperar para o futuro.

Afinal e então, qual seria o “modelo” da rede da 777 Partners? Ao que parece, o mais simples de todos: pegar clubes em situação difícil, injetar recursos, aguardar uma janela de valorização e vender. O mais clássico modelo norte-americano de negócios. Mas agora com um pacote completo, “premium plus”, com vários clubes.

Segundo Matt Slater, do site The Athletic, esse processo já pode estar em curso. Em seu relato do “Financial Times Business of Football Summit” [https://theathletic.com/4271909/2023/03/06/the-business-of-football-premier-league-vs-la-liga-clubs-for-sale-and-staveleys-tv-crew/], evento realizado em Londres no final de fevereiro, o grupo que controla o Newcastle United – financiado pelos interesses geopolíticos da Arábia Saudita – estaria planejando uma entrada na onda dos “multi-club ownerships”, mas em outro modelo.

Ao invés de despender tempo e recursos no longo processo de negociação e aquisição de clubes, o novo gigante inglês poderia simplesmente adquirir uma participação em um desses conglomerados de clubes já estabelecidos. Nisso entraria um grupo como a 777 Partners, que também já é cobiçado pelos novos donos do Chelsea.

Onde entra o futuro do Vasco nisso tudo, é muito difícil de dizer. Na realidade, é difícil de dizer algo em qualquer circunstância em uma indústria do futebol em que os ativos circulam mais rápido que posse de bola em jogo ruim.

Em 2021, o recorde de clubes europeus vendidos foi batido, ao todo 30 casos. Em 2022, esse recorde foi novamente batido, nada menos que 35 clubes trocaram de dono.

O fato é que esse é um modelo no qual se insere o Vasco é diferente dos anteriores, mas não deixa de ser um modelo em rede, onde as diferentes partes sempre se impactam em alguma medida.

A feira e a xepa

O interesse de grupos de MCO por clubes brasileiros parece ter dado breve uma arrefecida. Após os dois acordos negados pelo América-MG, não se falou de mais nenhum caso concreto sendo anunciado. A explicação pode estar nas movimentações recentes no futebol europeu, com oportunidades de aquisição de gigantes com Manchester United e Liverpool.

Envolvendo mais de 180 clubes ao redor do mundo, concentrando o direito de mais de 6.500 jogadores, o foco desses grupos agora está se dando nos clubes das divisões inferiores da Inglaterra.

O persistente crescimento desses grupos já ligou a sirene na UEFA, que pela primeira vez dedicou uma seção sobre o tema no seu anuário European Club Footballing Landscape. Nos últimos 5 anos, um total de 83 clubes foram adquiridos por MCOs, e outros 42 registraram a entrada de novos acionistas minoritários com participação em outra agremiação.

Em alguma fase dessa conturbada quadra histórica, que foi acelerada pela pandemia, será mais fácil entender quem projetou algo ou quem só tentou se valer de um ciclo vantajoso de “exit profit”.

Fonte: Ge

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