Quando terminou a primeira semifinal da Copa, muito se falou das adaptações de Lionel Scaloni ao rival. Mesmo que a inclusão de mais um meio-campista não tenha dado aos argentinos uma vantagem tática nos primeiros 30 minutos, a flexibilidade fazia sentido e o time está na final. Até o França x Marrocos mostrar que o futebol não é um jogo de fórmulas prontas.
Os marroquinos também trataram de se adaptar. Primeiro, aos seus próprios problemas. Walid Regragui optou por passar do 4-3-3 a uma linha de cinco defensores justamente para limitar a área coberta por jogadores fisicamente debilitados. E do outro lado havia Mbappé. A formação permitia fixar um dos três zagueiros para cuidar do atacante francês e liberar o lateral Hakimi para atacar o setor mais desprotegido da França, que opta por descansar Mbappé sem bola. Ele raramente volta para marcar.
Theo Hernandez comemora o gol em França x Marrocos
REUTERS/Dylan Martinez
Na mente dos treinadores, jogos de futebol não têm apenas 90 minutos. Eles são jogados dias antes, repetidas vezes. As ideias e alternativas dão voltas, escalações mudam. E o cruel é que a única opção posta à prova é a do treinador. Mesmo que faça sentido, sua ideia pode não funcionar. Foi o que aconteceu nos primeiros minutos da semifinal com Regragui.
O plano, coerente com duas necessidades do jogo, terminou por debilitar um traço marcante de Marrocos: o trio de meias que bloqueava passes entre as linhas estava reduzido a dois homens. Ao se inclinar por um terceiro zagueiro, Regragui teve um meio-campista a menos. Houve mais espaços para a França achar passes, um deles o do primeiro gol, logo no início. Ainda que, no lance, o movimento de Griezmann tenha sido vital para iludir El Yamiq.
Eram 21 minutos quando Saiss precisou se retirar do jogo, machucado. Regragui retornou ao 4-3-3 ao lançar Amallah, antigo titular do meio-campo. Marrocos se reequilibrou, negou oportunidades à França e passou a dominar. Não há regra em futebol: Marrocos funcionou melhor quando voltou ao plano original; a Argentina tem funcionado melhor quando se adapta.
O fato é que a desvantagem confirmou um traço pouco comentado dos marroquinos: eles não são apenas um time defensivo. Há ideias e capacidade de construir e a França foi fortemente pressionada. Mas não foi o bastante. Chega à final uma França que não se importa em assumir seus desequilíbrios, sua assimetria e, sempre que necessário, seu pragmatismo, que em 2018 a conduziu ao título.
Seu lado esquerdo é defensivamente mais frágil para não desgastar Mbappé, ainda que Theo Hernández fique exposto e os volantes precisem fazer seguidas compensações. Marrocos levou vantagem por ali, com Zyiech e Hakimi no primeiro tempo, até decidir definitivamente concentrar forças naquela zona do campo: até Boufal, o ponta esquerda, atravessava o campo para se juntar aos companheiros. Em dado momento, Mbappé abandonou a forma convicta com que ignora o jogo sem bola e foi visto vagando perto da área defendida por Lloris. A rigor, não chegou a travar tantos duelos defensivos.
Mas há um traço curioso nesta França. É um time que não parece sentir necessidade de dominar, de impor volume constante, de controlar. Porque mesmo quando parece ter se desequilibrado, impõe ao rival o permanente temor de que um gol pode surgir a qualquer instante, do nada, tamanha a capacidade de desequilíbrio de suas individualidades, em especial de seus atacantes.
Claro que dominar o meio-campo é importante, ganhar o duelo pelo centro do campo costuma impulsionar vitórias. Mas jogos se definem nas áreas, e a França é fortíssima nas duas. É difícil bater um time assim.
Além de um Mbappé permanentemente pronto para arrancar rumo ao gol, os franceses veem no Catar um Griezmann solidário, criativo com bola e disciplinado sem ela. Quando Marrocos pressionava, evitou que Zyiech finalizasse em boas condições na área. Se for preciso, marca o volante rival. Quando necessário, recompõe à frente da área francesa. Claro que Mbappé é mais frequentemente visto nos lances decisivos, mas Griezmann precisa ser tratado como candidato a craque do Mundial. Está na lista dos melhores.
Contra Marrocos, a fragilidade do lado esquerdo obrigou Didier Deschamps a lançar o atacante Marcus Thuram para auxiliar defensivamente no segundo tempo. A mexida, que transformou Mbappé num centroavante, fez a França retomar a rédea. Rodeado de defensores após um contragolpe francês, fez um malabarismo até tentar finalizar e ver a bola cair para Kolo Muani marcar o 2 a 0 e decretar a presença da França em sua segunda final de Copa seguida.
Os dois finalistas do Mundial não acumulam grandes atuações seguidas, oscilam, são um retrato de uma Copa marcada pelo equilíbrio, pelas dificuldades para bater qualquer adversário, de qualquer continente. Mas será uma final de muitos talentos e, claro, a final de Mbappé e Messi. Vão se encontrar no domingo os dois astros do PSG, clube comprado pelo Qatar como plataforma de polimento de imagem de uma ditadura que viola direitos humanos. Nos seus planos mais perfeitos, dificilmente os anfitriões imaginariam um desfecho melhor.