Ícone argentino nasceu em Toulouse, em 1890, com o nome de Charles Gardès. Depois, levou o tango mundo afora, teve uma vida envolta em mistérios e aventuras e tornou-se apaixonado por esportes -- entre eles, o futebol. Quando Uruguai e França enfrentaram-se nas quartas de final da Copa de 2018, um argentino organizador de milongas, os bailes de tango, comentou algo assim: "quem ganhar, fica com o local de nascimento de Carlos Gardel". O gracejo fazia eco a uma disputa de décadas sobre a origem do maior cantor de tangos de todos os tempos. Na verdade, mais que isso: junto com Eva Perón e Diego Maradona, um dos expoentes da santíssima trindade de santos populares argentinos.
O que se sabia desde sempre é que um dos maiores argentinos da história não havia nascido na Argentina. A versão uruguaia de que teria nascido em Tacuarembó, na verdade, é uma gambeta do próprio Gardel, que não tinha documentos, então providenciou em terras orientales, onde o procedimento era mais simples, uma comprovação de que lá havia nascido para, depois, encaminhar sua documentação argentina. A despeito de todas as provas, o Tacuarembó Fútbol Club eventualmente organiza a Copa Carlos Gardel. Depois de anos de hiato, foi realizada em 2022, tendo como convidado o Nacional. Mas bueno, voltemos às andanças do jovem Gardel. O Morocho del Abasto não queria se declarar francês para não correr o risco de ser convocado para a Primeira Guerra. Sua trincheira por enquanto era apenas o bairro da Balvanera. Depois, seria o mundo propriamente dito.
Cerca de dez anos atrás foi encontrada a certidão de nascimento de Gardel, que se juntava a outras muitas evidências para comprovar que na verdade ele nascera em 11 de dezembro de 1890 na cidade francesa de Toulouse com o nome de Charles Romuald Gardès, depois adaptado ao castelhano e todos os volteios de língua que isso acarreta. Chegou a Buenos Aires com dois anos, carregado nas cadeiras pela mãe, Marie Berthe Gardès, que deixara a França muito pela inconformidade da família em relação ao escandaloso romance que teve como maior consequência justamente o nascimento do pequeno Carlitos.
A história de Gardel causa arrepios -- se me pone la piel de gallina, como dizem os argentinos -- porque de certa forma é a personificação da própria história do tango, que deve muito aos imigrantes que chegaram a Buenos Aires a partir da segunda metade do século XIX: uma mãe solteira que enfrenta trinta dias de barco com um filho pequeno para tentar a vida em um país desconhecido. Que precisou morar em um conventillo, o equivalente ao nosso cortiço, e deixava o filho com a vizinha enquanto passava roupa em casas alheias. Por essas e por outras, Gardel sempre foi devotado à mãe -- se diz que muito tempo depois, quando já era famoso, o pai francês o procurou em Buenos Aires e foi mais ignorado que uma nota de três pesos. Gardel havia se tornado essencialmente argentino e porteño por excelência: tanguero, conversador, malevo e devotado à mãe. Sua Paris era a Calle Corrientes.
Gardel não foi o pai do tango. Uns trinta anos antes de entrar para a história gravando Mi noche triste, tema que inaugurava o Tango Canción, o gênero já havia aflorado nas margens da cidade, visto de cara torcida pela sociedade e carregando a fama de maldito pelo vínculo com os prostíbulos. O maestro Julio de Caro foi o primeiro revolucionário do tango ao organizar, no começo do século XX, toda aquela orgia instrumental em forma de arranjos musicais. Mas Gardel levou o tango e a Argentina mundo afora como ninguém havia feito. É difícil mensurar hoje o seu tamanho: provavelmente tratou-se do primeiro ídolo pop sul-americano. Era inteligente e pioneiro na estratégia de divulgação da a sua obra. Sua vida toda era um tanto misteriosa, e a impressão é de que ele alimentava essa névoa em torno do personagem que havia se tornado gigantesco, exatamente como na questão do seu local de nascimento. Só depois que morreu, por exemplo, descobriu-se que tinha uma bala alojada no abdômen, fruto de alguma diversão que alcançou contornos exagerados. Mesmo passando muito tempo longe de Buenos Aires, El Mago era a própria encarnação da mitologia porteña.
Quando era uma estrela mundial, presença frequente em filmes norte-americanos, morreu em um evento surreal como a sua vida: um acidente aéreo, porém terrestre, pois o avião havia em que voaria chocou-se em terra com outra aeronave em Bogotá, provocando uma imensa explosão. Seu velório juntou uma multidão em Buenos Aires e durou praticamente um dia inteiro. Houve tentativas de suicídio e diversas internações. Não houve na Argentina artista do tamanho de Gardel, e nem haverá, pois como dizem seus seguidores: cada día canta mejor. Ainda hoje os argentinos dizem, quando se referem a alguém que obtém extremo sucesso, que é um fenômeno no que faz: "Es Gardel". Assim, todos os grandes expoentes do tango, de alguma forma, foram Gardel. Charly García? Es Gardel. Messi? Também.
Aliás, se Carlos Gardel vivesse hoje, seria convidado da FIFA e a transmissão o buscaria a cada drible de Messi. Ou talvez simplesmente não tivesse comparecido se naquele mesmo momento houvesse um páreo de grandes proporções no Hipódromo de Palermo. Porque Carlos Gardel apreciava muito os esportes, mas era um burrero convicto: perdeu grande parte do seu dinheiro nas corridas de cavalo (e outro tanto distribuindo para quem lhe pedisse ajuda). Ele mesmo teve vários potrillos, sendo Lunático o mais emblemático deles, que até nome de música do Gotan Project virou. Nas noites que antecediam as corridas, Gardel se dirigia até o estábulo e cantava para Lunático. Percebam: um homem que canta para cavalos de fato merece a eternidade.
Como oitenta por cento dos tangueros da velha guarda, era hincha de Racing. E isso quem diz é o historiador Felipe Pigna, torcedor do Independiente. Mas Gardel também simpatizava com o Nacional do Uruguai e o Barcelona e, na verdade, se diz que era um grande frequentador das canchas, mas que na verdade seus afetos futebolísticos se multiplicavam conforme as amizades surgiam. Orgulhosos do torcedor ilustre, hoje tanto Racing quanto Nacional ostentam estátuas de Gardel em seus estádios. Na final da Copa de 30, conta-se que antes da partida desejou sorte ao quadro argentino e, depois, dirigiu-se ao vestiário uruguaio para felicitar os campões. Antes e depois, cantou para ambos os times as músicas que os muchachos pediam. Também era fã de boxe e fazia questão de se exercitar com disciplina para manter a estampa gardeliana -- como todas as pessoas que amam a vida, comia sem muito pudor, mas tinha tendência a engordar.
Quando Gardel morreu, sua mãe estava em Toulouse, visitando familiares. Em entrevista para veículos colombianos, disse que a encontraria assim que a turnê acabasse. A turnê nunca acabou e na casa que ele comprara para Doña Berta, na rua Jean Jaurés, no bairro porteño do Abasto, hoje funciona o Museu Carlos Gardel, distante dos pontos mais nobres de Buenos Aires, como correspondia a todos que chegavam pelo porto para depois se tornarem profundamente argentinos. Sobre domingo? Gardel apostaria uma guita fenomenal que Julian Álvarez marca o gol redentor, validado pelo VAR por una cabeza.
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