Enquanto ligas concorrentes sofrem para ampliar receitas televisivas, a liga inglesa indica aumento relevante na venda para mercado internacional, ampliando fosso econômico na elite europeia "A Premier League vai se tornar a NBA do futebol. Ela será maior do que a Champions League". Há quase dez anos Bernard Caiazzo, então presidente do tradicional clube francês St. Etienne, soltava tal frase apocalíptica em uma entrevista, gestando uma ideia que hoje domina a cabeça de qualquer atento observador do futebol.
A sensação é mesmo que a liga inglesa está se tornando o único verdadeiro produto global do futebol, se alimentando de uma discrepância financeira e midiática equivalente à que a NBA, a liga norte-americana de basquete, conseguiu obter diante das demais ligas concorrentes desse esporte.
Naquele fevereiro de 2015, a Premier League anunciava os valores do novo acordo de venda de direitos de transmissão para o ciclo das temporadas 2016/2017, 2017/18 e 2018/19. Os números que assombravam o dirigente francês sequer eram os dados concretos auferidos pela liga inglesa no fim das contas: nada menos que 7,2 bilhões de euros para o mercado doméstico, mais 4,5 bilhões de euros para o mercado internacional.
Essas cifras garantiram cerca de 3,5 bilhões de euros para os clubes da elite inglesa para cada temporada daquele novo ciclo. Um valor maior do que os 2,9 bi euros que os clubes da Ligue 1 (de onde vinha Caiazzo) teriam à disposição para todo o seu ciclo de quatro anos, de 2016-2020.
Embora aquele contrato tenha apresentado um valor fora da curva nos direitos doméstico - os dois ciclos seguintes seriam reduzidos a 5,5 bi euros (2019/2022 e 2022/25) -, também foi o momento que marcou o crescimento imprensionante do faturamento da Premier League com a venda dos direitos televisivos para o mercado internacional.
De cerca de 2,9 bi euros no ciclo 2013/16, o valor dos direitos internacionais saltou para 4,5 bi euros no ciclo 2015/19. Em seguida, novo crescimento, indo para 5,1 bi euros para 2019/22, pela primeira vez atingindo basicamente o mesmo valor dos direitos domésticos. Daí então, mesmo impactado pela pandemia, o ciclo 2022/25 finalmente superou a marca: 6,3 bi euros para o mercado internacional, contra 5,5 bi euros para o mercado doméstico.
E agora os indícios da discrepância financeira irreversível estão renovados. Os números oficiais ainda não foram divulgados, mas de acordo com a imprensa europeia, a Premier League anunciou no última sexta (22) um faturamento de 12,45 bilhões de libras (cerca de 15 bilhões de euros) para o próximo ciclo, um crescimento de 17%.
Ao que consta, o acordo para o mercado interno renderá 7,8 bilhões de euros, mas observando a mudança da extensão do ciclo de três para quatro anos. Na média, o valor da Premier League sofreu uma leve redução neste quesito. Por outro lado, o acordo para o mercado internacional manteve o padrão de ciclo de três anos e renderá impressionantes 7,2 bilhões de euros.
Em junho de 2024, Bernard Caiazzo vendeu sua participação no St. Etienne para o grupo canadense Kilmer Sports Ventures, depois de passar quase seis anos atrás de um comprador para o já não tão glorioso clube francês. Entre a fatídica frase que abriu o texto e a sua saída de definitiva do futebol, Caiazzo testemunhou mais evidências da sua visionária frase. Não só a liga inglesa não parou de crescer, como as receitas televisivas das ligas concorrentes basicamente estagnaram.
No caso da França, em especial, pesou um somatório de fatores que fizeram os clubes da Ligue 1 mais pobres hoje do que em 2015: um acordo mal feito que gerou um calote e uma crise desastrosa aos clubes; os efeitos da pandemia de Covid-19; e uma posterior ausência de interessados para a compra dos pacotes oferecidos.
Outras ligas também vivenciaram problemas parecidos. Junto com a França, a Espanha (La Liga) negociou a venda de parte dos direitos econômicos dos clubes para um grupo de investimento norte-americano, com a expectativa de que a capitalização imediata e a chegada de um novo player surtissem algum efeito nas novas negociações.
Mesmo alterando a extensão do ciclo de três para quatro ou cinco anos, algo também seguido pela Serie A italiana e pela Bundesliga alemã, o fato é que os valores destinados aos clubes se alteraram muito pouco. As principais ligas europeias se veem sob um fenômeno de "platô" no mercado interno, também com grandes dificuldades de emplacar melhores valores para o mercado internacional.
Uma breve exceção foi de La Liga, que praticamente dobrou (4,1 bilhões de euros) após aceitar negociar por cinco temporadas, não mais três. Na média, o valor teria subido em cerca de 700 para cerca de 830 milhões de euros por temporada - mas com o "custo" controverso do prazo de encerramento do contrato.
O desequilíbrio financeiro visto agora - que não é novo, mas se aprofunda, e que também indica um desequilíbrio esportivo cada vez maior -, impõe um desafio imenso às ligas de Espanha, Itália, Alemanha e França. Um caso recente talvez aponte uma alternativa arrojada de reverter o cenário
Em 2022, nove ligas europeias menores se juntaram para negociar de forma centralizada os direitos de transmissão internacional, buscando melhores valores: Islândia, Cazaquistão, Letônia, Irlanda do Norte, Polônia, Eslováquia, Noruega, Dinamarca e Suíça.
Embora as duas últimas tenham optado por sair do "pool" de ligas a partir do próximo ano, a iniciativa criou uma nova lógica interessante, à qual convém observar seu efeitos concretos. Por mais que pareça improvável, talvez esteja aí um formato possível para as grandes ligas diminuírem o fosso financeiro que se formou nas últimas décadas frente à poderosa Premier League.
Nesse cenário de incertezas, que muitas análises sugerem ser causado pelas renovações tecnológicas em curso no universo do "broadcast", o futebol europeu vê suas tradicionais estruturas profundamente abaladas. As chamadas "Big5 Leagues" estão deixando de existir, porque a Premier League mudou de vez de prateleira.
Dentre as renovações à vista, o tão desejado futuro do "streaming" tem um peso decisivo, porque também não demonstrou ainda ter viabilidade financeira consolidada. Nesse sentido, aliás, a Premier League novamente promete sair à frente: já rompeu o contrato com a IMG e passará a produzir o seu próprio o conteúdo, com a perspectiva de lançamento de uma plataforma paga já para 2026.
Bernard Caiazzo talvez tenha profetizado algo irreversível.