Com quatro treinadores do país, atual edição mostra que treinadores italianos merecem ser mais lembrados, mesmo com o país sumido da Copa do Mundo Com a classificação de Milan, Inter de Milão e Napoli para as quartas de final da Liga dos Campeões, a Itália tem três representantes entre os oito melhores da Europa pela primeira vez em 17 anos.
Com os treinadores, a conta fica ainda maior: metade das equipes na Liga dos Campeões é treinada por um italiano:
Carlo Ancelotti no Real Madrid
Simone Inzaghi na Inter de Milão
Luciano Spaletti no Napoli
Stefano Pioli no Milan
Spaletti é o técnico do Napoli, atual líder do Campeonato Italiano desta temporada
Divulgação / SSC Napoli
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É uma edição que lembra a força e importância do futebol italiano no mundo, mesmo com sua seleção fora de duas Copas do Mundo. E mostra que a escola de treinadores da Itália continua influente como foi na década de 1960 e 1980.
Mutantes, estrategistas, defensivos e ofensivos na mesma medida, os quatro treinadores italianos que podem vencer a Liga dos Campeões possuem distintas referências e crenças.
O que une eles é um dos diferenciais do futebol italiano que venceu quatro Copas do Mundo: todos passaram pela formação de técnicos da UEFA no Centro Técnico Federal de Coverciano, uma das referências mundiais quando o assunto é estudo do jogo.
Coverciano, onde as ideias tomam forma
Localizado em Florença, a escola de Coverciano existe desde o começo da década de 1950 como CT oficial da Azzurra - a Granja Comary deles - mas ganhou ares de escola no final da década de 1950. Era lá que acontecia uma reunião anual de treinadores com o intuito de repassar a temporada, discutir ideias e propor melhorias no futebol italiano. Com o passar dos anos, os treinadores italianos ganharam o costume de discutir o jogo sem o medo de que o adversário pudesse desvendá-lo.
Havia também um desejo de construir um legado próximo ao de Vittorio Pozzo. Único bi-campeão da Copa do Mundo e com 19 anos de trabalho na Azzurra, ele foi o primeiro "taticista" italiano ao interpretar o WM de Herbert Chapman no "metodo": um 3-2-5 com marcações individuais, muita força e bolas longas para Meazza. Só que seu sucesso estava muito ligado a Mussolini, herança que italianos não gostam de lembrar.
Vittorio Pozzo mostra o esquema tático da Itália a jornalistas
Reprodução
Catenaccio, a primeira escola italiana
É nesse contexto que Coverciano desempenha um papel fundamental ao provocar uma revolução de ideias na década de 1960. Inspirados nos húngaros e tchecos que tomavam conta da Europa, no sucesso do futebol ofensivo da Torinno e na técnica do Brasil bi-campeão, os treinadores italianos começam a remodelar o WM e o 4-2-4.
Foi um argentino que fez o futebol italiano ser famoso mundialmente: Heleno Herrera. Sua interpretação de Pozzo incluía um time com linhas muito baixas, dois pontas prontos para o "contropiede" e uma defesa em que dois zagueiros e um lateral marcavam individualmente, mas um deles ficava "livre", marcando a zona para limpar jogadas, o líbero. A Grande Inter de Herrera foi a maior equipe da Itália na década de 1960.
Helenio Herrera: o maior treinador da história da Inter
Reprodução
As ideias de Herrera influenciaram treinadores como Bruno Pesaola, Carlo Parola e o fundamental Nereo Rocco, que interpretou o modelo com adaptações: ora eram quatro defensores e Cesare Maldini como líbero, ora Trapattoni e Dino Sani ficavam mais avançados. Seu Milan foi o primeiro time italiano a vencer a Liga dos Campeões e era mutante e adaptável, usando marcação mista, líbero e trocas de posição pelo meio.
Decadência e renascimento com o Gioco all'italiana
Todo Carnaval tem seu fim, e Heleno Herrera já previra, no fim da década de 1960, que os encaixes da marcação individual se tornavam muito óbvios. Foi o que aconteceu na final da Copa do Mundo de 1970, com Carlos Alberto Torres entrando livre naquele fatídico gol e o sistema não conseguindo vencer a marcação por zona que ingleses começavam a adotar após 1960.
Giovanni Trapattoni, ex-jogador do Milan de Rocco e agora treinador, adapta o sistema e usa alguns conceitos da marcação por zona que o sueco Nils Liedholm introduzia no país. Os defensores continuavam a marcar o adversário e o líbero marcava o espaço. Mas os meias agora marcavam a zona e precisavam cobrir a defesa, e não mais acompanhar os meias adversários.
Giovanni Trapattoni
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A zona mista de Trapattoni virou febre na década de 1970 e 1980. Fez meiocampistas se tornaram líberos para armar o jogo, sendo o mais célebre deles Paulo Roberto Falcão na Roma que foi finalista da Europa em 1983. O Torino de Luigi Radice venceu a Serie A 27 anos após sua maior tragédia assim. Os times passaram a jogar com um segundo atacante ao invés de pontas, e Trapattoni foi, sem exagero, o maior treinador do mundo no período: 12 títulos na Juventus.
Foi assim também que Enzo Bearzot fez a Itália ganhar a Copa do Mundo em 1982 - não, o Brasil "não perdeu para si mesmo". Perdeu porque jogou mal e foi superado por um adversário taticamente muito melhor.
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Uma revolução chamada Arrigo Sacchi
O sucesso da Itália na década, a abertura de estrangeiros na Serie A e as saudosas transmissões criaram um auge na Itália comparável apenas ao Renascimento. É nesse cenário que mentes brilhantes costumam encontrar o casamento entre ideias inovadoras e grande aceitação que só acontecem uma vez na vida como foi com Arrigo Sacchi no Milan.
Influente em Coverciano, treinador da base da Fiorentina e com um bom trabalho no Parma, ele surpreendeu ao ser anunciado pelo poderoso Milan em 1987. Seu Milan jogava com duas linhas de quatro extremamente avançadas - no país do catennaccio! A pressão na saída de bola era intensa, sufocante. Todo mundo tinha que marcar o espaço. Não qualquer espaço: era a zona da bola. Zagueiros precisavam criar impedimento o tempo todo, e não tinham mais um líbero para dar conforto.
Arrigo Sacchi
Reprodução
Se hoje os times pressionam alto e um atacante faz gol roubando a bola do goleiro, é porque seu Milan venceu tudo e impôs uma troca de ritmo em todo o planeta: o futebol passou a ser mais rápido, mais tático e mais disputado. Não é acaso que é tido como referência por três treinadores que conquistaram a Europa e se tornaram seus discípulos: Fabio Capello, Marcelo Lippi e Carlo Ancelotti.
A final da Liga dos Campeões de 2002/03 é o símbolo desse legado: Lippi e Ancelotti, primeiro título europeu do Milan desde Capello. Alguns anos depois, Lippi venceria a Copa do Mundo com duas linhas de quatro como Sacchi. Carletto faria história em três finais europeias no Milan, depois no Chelsea, depois no Real Madrid, depois no Real Madrid de novo...será o próximo passo a seleção brasileira?
Carlo Ancelotti Real Madrid
Reuters
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Lippi, Trapattoni e Capello estão aposentados, e Sacchi preferiu assumir papel de mentor em Coverciano. Com Carletto em reta final da carreira - tomara que vestindo amarelo e azul, a Liga dos Campeões confronta uma geração de técnicos com muitas referências à disposição para darem seu toque pessoal.
Há o futebol de maior movimentação de Luciano Spaletti e Maurizio Sarri, ou um pragmatismo como o de Inzaghi e Antonio Conte. Há o poder de adaptação de Ancelotti e Pioli. E é preciso mencionar Roberto Mancini, vencedor da Eurocopa e parte da tríade de italianos que venceu a Premier League.
Na Liga dos Campeões de 2022/23, quatro italianos disputam um título para relembrar esse imenso e vencedor legado da escola italiana de futebol.