Conheça a história do argentino, artilheiro e um dos heróis do título tricolor da Libertadores Defensores del Chaco, Assunção, no Paraguai. Dia 31 de agosto de 2023. Quartas de final da Conmebol Libertadores, jogo de volta. O Fluminense havia acabado de chegar ao estádio e seus jogadores estavam dando o famoso "confere" no gramado, quando a torcida do Olimpia começou a provocar: "No tiene Copa, no tiene Copa" (em português: não tem Copa, em referência ao título do torneio).
Cano estava em pé, ao lado de um diretor do clube, olhando aquela cena na arquibancada. O atacante deu meia-volta para se dirigir ao vestiário, mas antes cochichou no ouvido do dirigente: "Fica tranquilo, este ano vamos ter".
Ele estava certo. O Tricolor foi campeão, sábado, ao vencer o Boca Juniors por 2 a 1 no Maracanã. Ao longo da campanha, o camisa 14, artilheiro da competição, fez 13 gols, um deles na final.
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Se ainda fosse vivo, o que diria Nelson Rodrigues sobre Germán Cano? Talvez um: "Eu vos digo que este argentino é o melhor atacante. E podem me dizer que os fatos não mostravam isso antes, que eu vos respondo: pior para os fatos". Já chamado de "Máquina de Gols" pela Fifa, o artilheiro do Fluminense tem na sua especialidade uma metáfora do que é a sua carreira.
Cano comemora título da Libertadores
REUTERS/Ricardo Moraes
Cano é aquele goleador que na maior parte das vezes decide com um só toque na bola. Com frequência essa bola demora a chegar, e aí precisa ser paciente para quando a oportunidade aparecer. Se agora ele se consagrou no continente com o título e a artilharia da Libertadores - e provavelmente com o prêmio de "Rei da América -, o argentino foi quase um desconhecido no futebol durante muitos anos.
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As origens
Para entender melhor essa história (e conhecer mais a fundo o novo ídolo tricolor), precisamos voltar aos anos 1990. Nascido em 1988, Cano é o segundo dos quatro filhos da cozinheira Marina Recalde com o sapateiro Ramón Cano, de quem herdou o sobrenome mais famoso: Germán Ezequiel Cano Recalde (na Argentina o nome materno é que vem por último).
Foto tirada de arquivo pessoal de Hernán Prol sobre Cano
Gustavo Garcia
De família humilde na pequena cidade de Carlos Spegazzini, na Grande Buenos Aires, Cano não se deu bem com os estudos e ajudava o pai na sapataria. No futebol, encontrou a sua paixão ao lado do irmão Julián, dois anos mais velho.
- Germán sempre foi muito perseverante, desde pequeno treinando sozinho ou com meu irmão. Nunca pensei que ia ser tanto, mas sempre soube que ia chegar longe. Tudo era futebol para ele. Gostava de ir para a casa da minha avó, de estar com os primos, mas sempre a bola tinha que estar presente - contou Morena Cano, irmã caçula do atacante de 17 anos, ao ge.
No intervalo entre o fim de carreira de Maradona e o surgimento de Messi, coube a um brasileiro ser a grande inspiração para o garoto. O Brasil dominava os holofotes e era tetracampeão do mundo em 1994, vice em 1998 e penta em 2002, e o argentino cresceu tendo Ronaldo Fenômeno como ídolo. Para ele, a rivalidade dos países nunca foi problema.
Hernán Prol com foto de Cano na infância
Gustavo Garcia
Porém, foi outro astro brasileiro que sem querer lhe abriu as portas. Jogando competições infantis por escolinhas de clubes de bairro, Cano despertou a atenção de uma forma bem diferente por volta dos 9 anos:
- Um dia escutei na rádio sobre um menino em um campeonato infantil que fazia gols e fui buscá-lo (risos). Quando eu o vi, ele me recordou um jogador de vocês (do Brasil): o Romário. Pequeno, vivíssimo, goleador. Era um "Romarinho", disse Hernán Prol, um ex-carpinteiro argentino e "descobridor" de Cano, em entrevista ao ge em junho.
Prol levou os irmãos para fazerem teste no Lanús, que ficou com os dois e ainda empregou a mãe como faxineira no clube. Foi quando Cano, então torcedor do Boca Juniors por influência do pai, passou a ter o Lanús como time do coração. E viajava cerca de 50km de trem todo dia para treinar. Ele nunca dormiu no alojamento do clube para ficar perto da família.
Cano na base do Lanús
Divulgação
Na base, ele era considerado baixo para ser centroavante e por vezes jogava mais aberto, mas já mostrava familiaridade com as redes. Ele chegou a ter certo sucesso e até mesmo a ganhar destaque em jornais locais. Tanto que vestiu a camisa 10 do Lanús antes de se profissionalizar. Porém, no time principal ele não teve espaço e acabou deixando o clube em 2010, aos 22 anos.
- Cano surgiu em uma categoria muito boa. A geração 1988 era muito boa mesmo, a concorrência era grande. Talvez, se tivéssemos esperado mais um pouco ele teria se destacado aqui - lamentou Beto Monje, ex-vice-presidente do Lanús, em entrevista ao ge em junho.
Como vinho
Cano ainda tentou a sorte em outros dois clubes argentinos, Chacarita Jrs e Colón, sem sucesso. No Independiente Medellín, da Colômbia é que começou a se destacar, já depois dos 25 anos. Mas foi quando voltou do México, já com 30 anos, que se tornou um artilheiro nato, chamou a atenção do Vasco e veio fazer sucesso no Brasil.
Cano com uma de suas paixões: vinho
Divulgação
Cano parece ser como vinho: quanto mais velho, melhor. Bebida da qual, por sinal, o argentino é fã. Vira e mexe posta fotos apreciando uma taça ou visitando uma vinícola.
- Ele sabe mais beber do que conhece (risos). Temos mesmo gosto, vinhos argentinos. Um Malbec argentino não tem erro. A gente sempre joga apostando uma garrafa - contou Leandro Apolinario, um dos grandes amigos da vida de Cano.
O jogo a que ele se refere não é futebol. Leandro é presidente da Federação de Golfe do Estado do Rio de Janeiro e torcedor do Vasco. Quando Cano ainda estava no rival e fez o seu primeiro gol sobre o Flamengo em 2021, comemorou imitando uma tacada de golfe. O futuro amigo quis agradecer o gesto de promover o esporte e confeccionou uma placa para agradecer ao atacante. Pronto, dali em diante começaram a jogar juntos e nunca mais pararam. E o talento não é só com a bola nos pés...
- Ultimamente estou devendo umas garrafas pra ele - admitiu Leandro aos risos ao ser perguntado se Cano joga bem.
Cano e o amigo Leandro Apolinario no golfe
Reprodução
Cano pratica golfe desde os 20 anos. Conheceu o esporte através de um amigo argentino e encontrou nele uma "fuga" para relaxar, já que a diversão do futebol dos tempos de criança foi ganhando responsabilidades com o passar do tempo. "O golfe me ajuda a manter tranquilo, concentrado. Quando vou para o campo de golfe, esqueço do mundo", declarou o atacante certa vez para a "Revista Acción".
- O golfe revela muito o caráter das pessoas porque você é o juiz de você mesmo. É muito fácil roubar no golfe, mas se fizer fica a fama de ladrãozinho e ninguém quer jogar mais com você. Então, quando o Cano sofre pênalti, foi pênalti. Ele não tem isso de simular, catimbar, apesar de ser argentino (risos). Está dentro dele. Se sofrer pênalti, falta, pode ter certeza que foi.
Um coração sem rancor
Cano não guarda rancor Um exemplo disso está estampado nas costas de seus uniformes: o número 14. Apesar de não ter tido oportunidade no time principal do Lanús, o atacante desde então passou a usar esta camisa em referência à "Barra 14", maior torcida do clube.
Ano passado, o sucesso no Brasil como maior artilheiro do país o fez ser especulado para a seleção da Argentina, mas Cano não foi convocado. Mesmo assim, o atacante foi ao Catar para assistir à Copa do Mundo. E comemorou muito o título de Messi e companhia.
Cano com a esposa e o filho no jogo da Argentina contra o México na Copa do Mundo
Divulgação
- Eu estava com ele no jogo Argentina x Holanda (quartas de final), e o cara torcendo para a seleção com toda energia que podia. Era pra ele estar no campo, ou pelo menos no banco. Foi injustiçado, era o sonho da vida dele. Mas o lado torcedor se sobrepôs e torcia com todo coração. Até falei para ele: "Você tá me dando uma aula de vida" - contou Leandro, que como vascaíno recebeu uma mensagem do amigo pedindo desculpas depois daquele golaço do meio de campo contra o Vasco este ano.
Nos longos anos em que ainda não era famoso, Cano muitas vezes foi alvo de comentários pejorativos em seu país, o que incomodava a família. Mas ele nunca sequer deu bola.
- Ver comentários das pessoas falando coisas feias do Germán, a família obviamente ficava na bronca. Mas ele sempre dizia: "Essas cosias não há que dar importância" - lembrou Morena, que atualmente é questionada até pelos professores na escola sobre o irmão famoso:
- Hoje ele sai por todos os lados, na televisão... É incrível. Eu tenho professores que me perguntam: "Como está Cano? Mande saudações".
Cano ao lado da irmã caçula, Morena
Arquivo Pessoal
Cano ficou famoso MESMO em seu país após o histórico 5 a 1 do Fluminense sobre o River Plate na fase de grupos da Conmebol Libertadores. O número de ligações e mensagens de repórteres argentinos explodiu, e o atacante sempre faz questão de atender a todos. Pessoalmente, afinal ele não tem assessor de imprensa. Ao longo da carreira, nunca precisou lidar com tanto assédio da mídia como nos últimos anos.
E também das pessoas. Após o título carioca desse ano, até pequenos torcedores do Flamengo pediram para tirar fotos com o artilheiro, ainda dentro do Maracanã. Segundo Leandro, ser tietado por rivais virou rotina no Brasil:
- Independente do clube, ele atende a todos sem distinção. Não tem tempo ruim. Pode estar almoçando que para de comer. Uma vez estávamos jantando em Angra (dos Reis), descobriram que ele estava lá. Eu fiquei organizando a fila e ficava perguntando o time de cada um, era são-paulino, palmeirense, vascaíno, flamenguista... Ele transcendeu essa questão clubística (risos). Não tem essa de "agora não". Nunca o vi falar isso, nunca.
Cano tirou foto com jovens torcedores do Flamengo após a final
Reprodução
E o sucesso recente não "subiu à cabeça", garante quem convive com ele. E Cano nunca abandonou as raízes. Sempre nas férias vai visitar a família na Argentina. Morena era criancinha quando viu o irmão sair do país com o sonho de ser jogador, tem poucas lembranças dessa época, mas guarda com carinho todas as vezes que Cano retorna para o Natal e Ano Novo.
- Desde pequena sou bastante unida com meus irmãos. Germán me chamava para ir comprar roupa, perguntava o que necessitava. Quando ele vem, saímos para passear só os irmãos. Meus irmãos são tudo para mim, eu os amo demais. Os momentos com Germán são únicos, são meus momentos favoritos. Rimos e choramos juntos. E ver como ele está hoje em dia, para mim é incrível.
Cano ao lado dos irmãos Julián e Morena
Arquivo Pessoal
Nos livros de história
A dificuldade na escola quando criança talvez explique um pouco do Cano adulto. Diferente de Arias, por exemplo, que ao chegar ao clube estudou sua história e procurou saber sobre o "Casal 20" Assis e Washington, quando sua dupla com o argentino foi comparada com a dos anos 80.
Cano não tem muito esse lado. Até chegou a confundir a torcida com uma comemoração. Esse ano, quando fez um dos gols da vitória sobre o Cruzeiro no Mineirão, comemorou com as mãos fazendo um movimento perto da cabeça, um gesto muito comum das comemorações de Assis. As comparações foram instantâneas nas redes sociais. Mas a é verdade é que ele nunca teve esse intuito.
Comemoração de Cano que torcida achou que era homenagem a Assis
Reprodução
Na verdade, a comemoração era para Mauro Godoy, um argentino que jogou com Cano na base do Lanús. Eles são amigos até hoje. Godoy, que tem o apelido de "cabeção", vem frequentemente ao Brasil e na época pediu ao atacante para homenageá-lo caso marcasse um gol.
De Castilho certamente Cano já ouviu falar, até porque é o nome do CT tricolor. Mas talvez também não saiba que o ex-goleiro, considerado por muitos o maior ídolo da história do clube, chegou a amputar um dedo da mão para continuar jogando pelo Fluminense na década de 1950.
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Torcedor com roupinha de bebê com nome e número de Cano no jogo do Fluminense
Marcelo Gonçalves / Fluminense FC
No sábado, Cano entrou para os livros de história da América do Sul e principalmente do Fluminense. Entrou no rol de ídolos eternos do clube. Alô, Fred, Castilho e companhia: cabe um argentino aí?
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