Seja pela experiência no futebol, pelos relatos dos jogadores que atuaram sob seu comando, ou mesmo pelos resultados recentes em clubes que viviam momentos instáveis, há muitos motivos para achar que Dorival Júnior pode construir uma seleção brasileira capaz de jogar bem e de vencer. O que não significa concordar com parte de seu diagnóstico sobre o momento da equipe. A maior crise da seleção brasileira não é de amor, é de resultados. A esta, se somou uma crise de gestão, de processos, o que fez de 2023 um ano desperdiçado. Uma de suas missões é recuperar este tempo perdido.
Dentre tantos acertos, Dorival faz bem ao abrir as portas da seleção. Estimular contribuições de treinadores e de todos os profissionais que atuam no jogo é saudável. É sinal da clara compreensão de que o técnico não é o dono da seleção. Há uma comunidade com a qual é importante se relacionar.
A partir daí, no entanto, ele atribuiu a si próprio duas missões: restaurar a relação dos jogadores com a camisa brasileira e reaproximar o torcedor da equipe. São dois temas sensíveis, porque falam ao coração da arquibancada. Ocorre que tal abordagem soa como a busca por solucionar uma crise que não existe. Se há alguma aresta na relação entre a torcida brasileira e a seleção, não parece estar ao alcance do treinador a solução. Aliás, o técnico é uma das vítimas.
Em junho, Dorival terá que elaborar a lista para a Copa América, primeiro período em que poderá conviver por cerca de um mês com os jogadores. Terá duas opções: ou sabota o seu trabalho, ou tira alguns jogadores de nove rodadas do Campeonato Brasileiro. Estará estabelecido o conflito: clubes vão protestar, ganharão apoio de seus torcedores e verão a seleção como vilã. Dorival, o mensageiro da notícia antipática, será a imagem do dano aos clubes. Será responsabilizado por um problema que não criou, culpado apenas por fazer seu trabalho.
Dorival Júnior CBF seleção brasileira
Pilar Olivares/Reuters
Claro que a exportação precoce de talentos não ajuda a criar laços, mas é difícil sustentar a tese da indiferença, do afastamento. O que o Brasil vive é uma alteração cíclica de humor em torno da seleção: historicamente, a falta de títulos fez vingarem a tese da falta de compromisso dos jogadores com a seleção e a convicção de que o público se distanciou do time.
A seleção de 1970 deixou o Brasil sob intensa pressão. A seleção do tetra viajou cercada de pessimismo e, a um ano e meio do penta, no Morumbi, bandeiras do Brasil eram atiradas no gramado durante um jogo com a Colômbia. Nem as seleções vitoriosas viveram rotinas pacíficas. A insatisfação é uma marca dos ciclos, em especial dos que começam após Copas perdidas. É sintoma de um país frustrado, mas jamais indiferente. Em seis anos, o time de Tite criou esperança, euforia, desapontamento em 2018, imensa pressão em parte do ciclo rumo ao Catar e uma nova onda de esperança, esta transformada em imagens de lágrimas Brasil afora após a derrota para a Croácia.
Outro debate cíclico é como, a cada crise de resultados, a postura de atletas vira o centro dos debates. Em 1990, o Brasil foi à Itália com inéditos 12 jogadores atuando no exterior. A derrota nas oitavas-de-final levou à conclusão de que os "estrangeiros", distantes de suas origens, haviam perdido o prazer de defender a seleção. Encerrada a Copa, Falcão substituiu Lazaroni e foi incentivado a montar uma seleção doméstica, o que resultou em sete partidas sem vencer, a primeira delas um 3 a 0 inapelável aplicado pela Espanha. Com a base de 1990, "estrangeiros" incluídos, Parreira e Zagallo construíram o time tetracampeão. De novo, não havia crise de amor. Havia a necessidade de dar tempo aos processos.
Hoje, jogadores donos de contratos valiosíssimos disputam partidas por ligas europeias num domingo, entram num avião logo em seguida e viajam por 12 horas até o Brasil. Jogam numa sexta-feira, antes de se deslocaram até seis horas, digamos, para o Equador. Lá, jogam outra vez na terça-feira, antes de outro voo de mais 12 horas para a Europa. Voltam a trabalhar numa quinta-feira e, no sábado, estão em campo de novo. A rotina é repetida numa frequência quase mensal, e ainda assim cada convocação é celebrada com vídeos de jogadores às lágrimas. A imagem destes jovens devastados no campo após a vitória croata nos pênaltis, no Catar, não foi uma miragem.
Estes mesmos jogadores arrastam pequenas multidões à porta dos hotéis onde a seleção se concentra. A cada jogo, os ingressos – caríssimos – evaporam e as audiências seguem elevadas. Cada atuação do Brasil é examinada com lupa e os resultados são cobrados com a impaciência de um país que só aceita vencer. Alisson, Marquinhos, Casemiro, Rodrygo, todos eles são ídolos nacionais. Vinícius Júnior causa histeria, e Neymar é um furacão por onde passa. O país não é indiferente à seleção.
Dorival acertou no primeiro passo: entender onde pisa. O treinador da seleção é, antes de tudo, um relações públicas do time. Cabe a ele o discurso de união, de convergência. Neste ponto, sua primeira entrevista tem muitos acertos.
Resta aguardar pela primeira convocação e pelos sinais que virão do campo. A Copa América virá após apenas quatro amistosos e pouquíssimos treinos. E aí surgirá o primeiro rival pesado de Dorival: a ansiedade tipicamente brasileira. Se houvesse indiferença, o resultado imediato pesaria menos.