anuncie

Como Zagallo criou a escola brasileira de futebol no Brasil de 1970

.

Por Virtual Rondônia em 06/01/2024 às 12:34:30
Mudanças do técnico há mais de 50 anos estabeleceram modelo para treinadores seguintes e compõem os elementos do jogo alegre, criativo e ofensivo que o torcedor valoriza até hoje Em 1940, Orson Welles era um jovem radialista quando ganhou a chance de dirigir seu primeiro filme. O resultado foi "Cidadão Kane", considerado por muitos como o melhor filme já feito. Welles nunca mais conseguiu repetir a genialidade de Kane, mas permanece como cânone na história do cinema. Mário Jorge Lobo Zagallo é o Orson Welles do futebol. Ele teve o mesmo toque de genialidade na Seleção Tricampeã do Mundo.

"Minha geração tem que ter uma gratidão muito grande pelo Zagallo", diz maestro Júnior

Cidadão Kane e a Seleção do Tri foram balizadores de suas épocas. Eles estabeleceram as condições e as comparações com tudo o que viria a partir deles. O Brasil de 1970 formou a opinião de absolutamente todo mundo, brasileiro ou não, desconstruído ou não, sobre futebol. Tudo o que você cobra e espera de um time de futebol estava lá. O jogo solto e alegre, mas coletivo. O talento em estado bruto, com cada um em sua posição. A vitória pelo futebol ofensivo, mas também a garra para vencer a Inglaterra – de longe o melhor jogo da Copa.

Todo o imaginário da arquibancada, tudo o que você tem como premissas e verdades sobre o futebol, tudo o que seu pai e avô passou a você nasce de 1970.

A conquista também estabelece uma escola tática, uma filosofia sobre como jogar futebol, viva até hoje. É algo que você não vai ler em nenhum livro, ou que não tem um nome tão definido como "Jogo de Posição". Mas a escola que inspirou a campanha "Joga Bonito" da Nike, ou o "Ousadia e Alegria" de Neymar, estão lá em 1970.

+ Veja o interativo sobre os 50 anos do Tri no México

Mudanças de Zagallo aproveitam o que era feito na época

Para entender o que é essa escola, é preciso entender como era o time antes de Zagallo. As "Feras de Saldanha" tinham vários titulares em comum, mas jogavam de um modo diferente. Era um 4-2-4 mais rígido, com mais jogadas pelos lados. A inspiração era a Inglaterra de 1966, a grande equipe da época. Saldanha queria que Edu e Jairzinho fossem rápidos e voltassem para marcar como Hurst. Queria que Pelé fosse genial, mas preenchesse o meio como Bobby Charlton. Só que o desempenho começou a cair entre 1969 e 1970, muito pelo temperamento explosivo de Saldanha. A gota d´água foi uma crítica pública a Pelé, e não exatamente a não escalação de Dadá Maravilha.

João Saldanha

Gazeta Press

Zagallo foi escolhido por aparecer pouco. O Velho Lobo nunca foi um técnico autoral. Era um conciliador de talentos. Identificava um potencial técnico – algo que determinado jogador fazia com precisão – e encaixava aquela jogada ao time. Definia cobertura, posicionamento e simetria para que a equipe ficasse encaixada com e sem a posse da bola. Juntar várias coisas que já aconteciam no futebol brasileiro da época foi o grande mérito do Velho Lobo.

A primeira mudança foi a introdução de Rivellino pela esquerda. Rivellino jogava como armador no Corinthians de Dino Sani e encantava pelos toques rápidos. Zagallo pensava que, saindo da esquerda por dentro, ele poderia dar agilidade nas tabelas com Pelé e Gérson. O falso ponta já era uma posição comum da época: o Palmeiras de Rubens Minelli, então campeão brasileiro, tinha Pio saindo do lado e vindo tabelar com Ademir da Guia.

A segunda mudança foi sem a bola. Zagallo introduziu o sistema de coberturas nascido na década de 1950 e chamado de "diagonal". Ele estabelece uma assimetria no campo para deixar o jogador com maior potencial técnico mais perto da área, chegando como elemento surpresa. Zagallo queria que Carlos Alberto Torres se juntasse ao ataque e tabelasse com Pelé, como fazia no Santos. Para manter a cobertura e evitar um contra-ataque, Everaldo fazia uma linha com os zagueiros. Como sobrava um espaço do lado esquerdo, Rivellino, Tostão e até Gérson se revezavam entre ficar aberto ou procurar o centro do jogo.

Na prática, eram sempre três jogadores atrás da linha da bola e próximos para pegar o rebote. Clodoaldo ficava na frente deles para dar o primeiro combate e, aos 20 anos, era rápido e podia anular o ponta-de-lança adversário. Também podia avançar se a marcação estivesse muito fechada, como fez contra o Uruguai. Lembra de Mineiro contra o Liverpool? Nasce dessa concepção de primeiro volante.

A terceira mudança foi postura. O Brasil de Saldanha queria jogar no campo do adversário, ao estilo do Barcelona. Mas isso tinha efeito contrário: os adversários se fechavam e formavam uma retranca. Zagallo queria surpreender os europeus: entregava a bola a eles e apostava na velocidade. De um modo claro, o Brasil de 1970 fazia sua própria retranca para atrair e desmanchar a retranca do outro lado. Dos 19 gols marcados em 1970, nove saíram de contra-ataques.

"Os europeus gostavam de velocidade e contra-ataque. Se recuarmos todos para marcar atrás do meio-campo, eles não saberão o que fazer" – Carlos Alberto Parreira.

Pelé e Zagallo, campeões do mundo no campo em 1958, 1962 e 1970

Arquivo Nacional

Deu tão certo que Zagallo praticamente moldou o papel do técnico brasileiro aí. Quando Romário fala que o papel do técnico é "não atrapalhar", é porque Zagallo não pediu a ninguém para cumprir funções ou voltar para marcar: ele só organizou e acomodou o talento. Reprisou no jogo o que era feito na rua - na época, o Brasil estava começando a se industrializar e era um país ainda agrário. Tanto que os treinos técnicos eram pautados em dois toques, para os jogadores se olharem e se entenderem como na rua.

Era um futebol de liberdade de criatividade e decisão, desde que todo mundo cumprisse suas obrigações sem a posse da bola – retornar ao meio-campo e aproveitar contra-ataques. Essa é a gênese do futebol brasileiro. Tudo está em 1970, todos os mitos e cobranças no Twitter após aquela derrota no estadual: "os melhores têm que jogar", o craque "não pode voltar para marcar", o time fica muito "robotizado". Toda a alegria de ter um protagonista como Gabigol ou o drible de Bruno Henrique também estão lá.

Jairzinho em jogada com Fachetti, durante a final da Copa de 1970

Getty Images

Assim como Orson Welles, Zagallo nunca mais conseguiu repetir o sucesso. Em 1974, apostava no mesmíssimo sistema, com Dirceu no papel de Rivellino e Paulo César Caju emulando Pelé. Em 1998, tentou Rivaldo como ponta-de-lança e apostou em Leonardo, atacante na Inter, como falso-ponta. Em clubes, passagens curtas por clubes cariocas em suas eternas crises e mais mito que trabalho na Portuguesa, em 1999.

Mas a influência é imensa. Mário Travaglini oficializou o falso-ponta no Vasco campeão em 1974. Rubens Minelli elevou o sistema de coberturas com a linha de impedimento e o avanço de Falcão no revolucionário Internacional de 1975 e 1976. Treinadores como Ênio Andrade, Carlos Alberto Silva, Antônio Lopes, Abel Braga e Joel Santana bebem na mesma fonte. Telê Santana, que compartilhava com Zagallo a admiração por Zezé Moreira, tinha a exata mesma metodologia de treino. E Vanderlei Luxemburgo é o aluno máximo do Velho Lobo, importando para cinco Brasileiros e dez Estaduais o mesmo sistema de coberturas, rodízios e troca de posições.

+ Uma aula de Luxemburgo sobre defender "à brasileira", com encaixes por setor

+ Como funcionava o toque de bola do Brasil que encantou o mundo na Copa de 1982

+ Afinal, por que o Brasil perdeu da Itália na Copa de 1982?

Zagallo também tem um papel metodológico fundamental no Brasil. Seus métodos começaram a fazer sucesso porque lidavam com o bem mais escasso no futebol brasileiro: tempo. A Seleção de 1970 foi montada em três meses. Os treinos eram quase todos físicos, para fazer aquela ideia de "quebra de retranca"'; e muitos treinos técnicos, de dois toques, para que os jogadores estivessem afinados nos gestos do jogo.

O único treino coletivo era o rachão, onde Zagallo passava instruções de posicionamento e cobertura. Com a bola, todo mundo girava de posição e tocava para quem estava mais próximo. Não havia um posicionamento ofensivo a seguir, como hoje, em que vemos os laterais abertos, os pontas por dentro...a ideia era sempre quebrar a retranca nos contra-ataques e ir tocando, "negociando" passes até um espaço aparecer.

Zagallo, Parreira, Seleção, Brasil, 1994

Reuters

Diferentes escolas de jogo, mesma base

É impossível falar em "futebol brasileiro" sem entender que existem escolas e filosofias diferentes como o tamanho do país pressupõe. A escola gaúcha aprimorou a ideia de Zagallo sem a bola. Era mais agressiva. Queria mais pressão na bola e mais organização sem ela. Também não tinha tanta paciência para ir tocando de pé em pé e preferia um jogo mais direto, com lançamentos, ou toques mais sistematizados. É emblemático que Luiz Felipe Scolari, logo após ganhar o Brasileirão de 2018, diz em entrevista coletiva o mesmo que Zagallo tantas vezes disse: "apenas organizei o time sem a bola e deixei eles livres para jogarem".

Em resumo, Zagallo moldou a ideia de que um time de futebol deve vencer a partir do talento. Era o contraponto dos europeus, que acreditam que o time deveria vencer a partir da organização. E também confrontava a visão argentina do jogo, que acreditava que o time deveria vencer a partir do "coração"

A tensão entre "liberdade para criar" e "obediência à função tática" é base de discussões tão intermináveis....quanto inúteis. Existe até um nome acadêmico e que estampa diversas teses de doutorado: "Futebol Força vs Futebol Arte". Esse contraponto simplesmente não existe. O Brasil de 1970 jamais teria dado espetáculo se não tivesse consciência tática e talento criativo. Ninguém ganha só porque é forte ou só porque é talentoso. O jogo é a junção de quatro matrizes que se interligam o tempo todo, não uma separação cartesiana entre técnica, força e tática. É tudo junto e misturado, o tempo todo.

A falsa oposição entre técnica e tática atrapalha há décadas o futebol brasileiro. Durante muitos anos, clubes de futebol se viram acomodados, confortáveis ao comprar jogadores do interior e esperar que o técnico encaixasse todo mundo como Zagallo fazia. Jamais se organizaram para formar os próprios jogadores ou ter uma cultura própria. Os próprios técnicos passaram a ignorar a sala de aula porque a fórmula sempre dava certo. Os jogadores também se viram divididos: todo mundo nasce sonhando em ser Pelé, e se não tem qualidade, vai indo para as outras posições.

Toda fórmula tem seus pontos bons e ruins

Zagallo não sabia e não é culpa dele, mas ele criou uma fórmula tão perfeita para a verdadeira baderna que é o Brasil que fez todo mundo não se mexer para mudar. Quando havia sinais de que algo estava errado – crise financeira, êxodo de jogadores e má qualidade do jogo – bastava culpar o técnico por...não encaixar o time como Zagallo fez!

Olhar para a Seleção de 1970 hoje é olhar para um futebol que não existe mais. Que pode ser igualmente belo e espetacular. Como unir a primazia técnica dos craques dentro de um jogo onde há menos espaços e o jogador tem cada vez menos tempo com a bola? Como formar na base jogadores com a mesma iniciativa pessoal de Jarzinho e leitura de jogo rápida e inteligente como a de Messi? Como adaptar a fórmula de Zagallo para as novas metodologias de treino, como periodização tática ou treino integrado?

É a resposta dessas perguntas que vai ditar o presente e o futuro. É a discussão que importa. É a discussão que precisamos ter. Já são longos 50 anos entre o agora e o maior time da história do planeta. Hora de aprender as lições e buscar mais um Brasil de 1970 para ficar na memória.

>>> Finta de Havelange golpeou mais Uruguai do que cotovelo de Pelé: "Deixou de doer"

>>> Seleção brasileira teve segurança reforçada por ameaça de sequestro a Pelé

>>> Conquista foi destaque no Esporte Espetacular

>>> CBF divulga carta de Tite para Zagallo

>>> Dez técnicos gringos do futebol atual analisam e se rendem ao Brasil de 1970

Fonte: Ge

Comunicar erro
LANCHE DA JAPA

Comentários

anuncie aqui